Desenvolvimento econômico e o uso consciente dos recursos
Por Camilla Silva e Stephanie Kohn. Colaborou Marcelo Gripa.
Combinar desenvolvimento econômico ao uso consciente dos recursos naturais se tornou essencial para a sobrevivência das nações e, consequentemente, do planeta. Nessa lógica, surgiu o conceito de economia circular, que se refere a modelos de negócios que otimizam operações de produção e uso de recursos, diminuindo a dependência de matéria-prima bruta, optando por insumos renováveis, recicláveis e mais resistentes. Dessa forma, a ideia é gerar valor sobre recursos, estimulando o reuso e/ou durabilidade de mercadorias.
Sendo assim, a economia circular é uma alternativa à economia linear, que tem como base a tríade “extrair, produzir e descartar”. Diante das estagnações trazidas por esse sistema, desde a década de 1970 o conceito sustentável começou a ganhar forma. No entanto, foi em grande parte difundido pela velejadora Ellen MacArthur, que, ao viajar o mundo todo, percebeu a necessidade de ampliar a vida útil de suprimentos.
Ellen, inclusive, criou uma ONG com seu nome, que em 2012 tornou a economia circular um tema de escala global, ao publicar uma série de relatórios a esse respeito. Desde então esse modelo tem encontrado espaço em uma variedade de negócios mundialmente.
Para a Trocafone, loja nacional especializada em smartphones seminovos, a economia circular é essencial para o planeta, sobretudo em tempos nos quais recursos essenciais estão cada vez mais escassos.
Impactos na sociedade, planeta e economia
“A economia circular tem uma importância vital para o planeta, pois a reutilização de produtos contribui diretamente para redução do lixo eletrônico, além de fomentar a inclusão pelo acesso à tecnologia”, destacou a Trocafone ao Economeaning sem especificar o porta-voz, devido ao momento de silêncio que antecede o IPO. “O modelo de operação da Trocafone, focado no recondicionamento de smartphones, contribuiu para evitar que 65 toneladas de materiais virassem lixo eletrônico, a partir da venda de mais de 1,4 milhão de aparelhos. E queremos aumentar essa colaboração”, completou.
A Trocafone ainda explicou que, apesar disso, o mercado brasileiro de smartphones seminovos está longe de alcançar a média global mundial, de 18%. “Em 2020 foram vendidos 3,1 milhões de smartphones seminovos no Brasil, o que representa 7,2% de todos smartphones vendidos, segundo pesquisa da IDC”, revelou.
Conforme dados da Confederação Nacional das Indústrias (CNI), mais de 75% das indústrias aplicam algum tipo de economia circular. Contudo, para Robson Braga de Andrade, presidente da CNI, existem outros potenciais importantes a serem explorados no ramo. Para ele, isso será possível com a articulação entre a “iniciativa privada, governo, academia e sociedade”.
Contexto mundial e internacional
Segundo dados da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (UNIDO), a expectativa é de que 3 bilhões de novos consumidores da classe média surjam em 2050 globalmente. De 1970 a 2017, a extração mundial de matéria-prima passou de 27 bilhões de toneladas para 92 bilhões de toneladas; a projeção é que em 2060 esse volume chegue a 167 bilhões de toneladas.
Para compreender as dinâmicas atuais da economia circular no exterior, o Economeaning falou com a Acatech, academia Alemã de Ciências e Engenharia, integrante da Iniciativa de Economia Circular da Alemanha (Circular Economy Initiative Germany). Confira a entrevista na íntegra:
Economeaning: Qual o estágio atual da economia circular na Alemanha?
Acatech: Atualmente, o status quo da economia circular na Alemanha é melhor descrito por meio da “gestão de resíduos com base na reciclagem”. Em 2018, mais resíduos foram produzidos do que nunca, quase 420 milhões de toneladas. Embora quase 70% dos recursos tenham sido reciclados, isso não contribui para uma redução nítida do uso de matéria-prima. Dependendo do indicador usado, apenas 13% (DERec - Efeitos Diretos de Recuperação) ou 18% (DIERec - Efeitos Diretos e Indiretos de Recuperação, incluindo cadeias globais de upstream) são alcançados em economia de matéria-prima.
Como consequência disso, a Taxa de Uso de Material Circular na Alemanha é de 12%, logo abaixo da média europeia e atrás de países vizinhos, como Bélgica, Itália e Holanda, com este último atingindo um valor de 28%.
Além disso, no passado, a economia circular alemã se concentrava principalmente no fim do ciclo de vida do produto, ou seja, na reciclagem. No entanto, para conseguir dissociar o consumo de recursos do crescimento econômico, é necessária a compreensão mais sistêmica desse conceito.
Isso inclui aspectos, como a extensão dos ciclos de vida dos produtos, padrões de uso intensivo, bem como os efeitos de sistema resultantes (exergia). Porém, estamos felizes com essa compreensão mais ampla sobre o tema e seus potenciais para contribuir para a proteção do clima e conservação de recursos.
Economeaning: Fale sobre os desafios que a economia circular enfrenta atualmente no país e como podem ser resolvidos.
Acatech: Há uma série de desafios que precisam ser enfrentados. Por exemplo, a Lei de Economia Circular ainda é conduzida de uma perspectiva de gestão de resíduos com foco na reciclagem e descarte. Isso entra em conflito com o entendimento mais recente de uma economia circular, que enfatiza a prevenção por meio da extensão de vida útil dos produtos, além de atividades de reutilização e remanufatura.
Como consequência, reformas isoladas de gestão de resíduos ou a simples adaptação das políticas de ecodesign não são suficientes. Exigimos maior compreensão sobre estruturas políticas do produto, incluindo características mínimas de design circular, acessibilidade digital de suas informações, maior responsabilidade dos produtores/varejistas ao longo do seu ciclo de vida, bem como a prevenção do fim do produto em situações nas quais atividades de reparo, reutilização ou remanufatura são viáveis; o mesmo vale para a vida útil de resíduos, nos casos em que a reciclagem é possível.
Além disso, na gestão de resíduos devem ser considerados os volumes de reciclados que entram nas usinas de reciclagem, critérios referentes à qualidade desses materiais, bem como os requisitos específicos do setor para se obter o conteúdo mínimo reciclado de materiais no pós-consumo.
É também hora de se desenvolver um conceito coerente para a prevenção de resíduos com metas quantitativas, medidas e incentivos e cronogramas econômicos inteligentes. Na Alemanha, o consumo de matéria-prima per capita por ano é de cerca de 23 toneladas, quase o dobro da média mundial.
Economeaning: Com base em sua experiência, existe um grupo especial de setores que está liderando a transformação da economia circular? Se sim, quais são e por quê?
Acatech: Existem empresas dos mais diversos setores que já se encaminham para a economia circular, e algumas até já são consideradas pioneiras na sua área. Como parte da Circular Economy Initiative Germany, examinamos de perto dois setores: embalagens e baterias de tração.
Uma das empresas com que trabalhamos especificamente no setor de embalagens é o Grupo Schwarz, um bom exemplo de empresa líder na transformação para uma economia circular. O Grupo Schwarz, proprietário das renomadas lojas Lidl e Kaufland e considerada a maior rede de varejo da Europa, lançou a estratégia “Reset Plastic” em 2018. Essa é uma estratégia ambiciosa de cadeia de valor cruzada com base na integração vertical na gestão de resíduos e materiais. Seu objetivo é oferecer embalagens 100% recicláveis e reduzir o desperdício de plástico.
A partir de 2009, o grupo fundou a empresa GreenCycle para gerenciamento de seus resíduos internos. Em 2018, a empresa seguiu com a plataforma digital de gestão de resíduos PreZero para atender parceiros externos no mercado e adquirir duas unidades de reciclagem. Por meio da combinação de suas unidades de negócios, que abrangem as fases de produção, varejo, reciclagem e gestão de resíduos, o grupo está em posição de fechar ciclos de materiais de forma holística.
Economeaning: Quais são as lições que a Acatech aprendeu no processo de conscientização e mudança de mentalidade sobre o tema?
Acatech: Foi uma experiência extraordinária trabalhar com mais de 130 especialistas do meio acadêmico, empresarial e da sociedade civil e chegar a um consenso sobre os passos necessários para a transformação para uma economia circular na Alemanha. A mensagem mais importante desse processo também se tornou mais do que clara em nosso trabalho: a economia circular precisa de todos. Uma transformação bem-sucedida para uma economia circular só é possível se política, ciência, negócios e sociedade trabalharem juntos.
Nos ecossistemas circulares, os modelos de negócios de parceiros precisam ser levados em consideração, pois as soluções circulares geralmente não podem ser implementadas com sucesso por uma única empresa. Em vez da otimização isolada e da maximização do lucro do modelo de negócios de uma empresa, o foco precisa mudar para a configuração, otimização e distribuição corretas de lucros dentro do ecossistema.
Para que essas mudanças tenham sucesso, precisamos também de mudanças profundas na sociedade. A ideia de criação de valor na fase de produção precisa ser estendida à ideia de preservação, na qual a sociedade desempenha papel importante. Nós, como cidadãos, precisamos reaprender o valor dos recursos, se quisermos nos engajar em estratégias circulares, como comprar serviços em vez de possuir produtos, consertar dispositivos, comprar produtos remanufaturados ou recondicionados e apoiar uma reciclagem de alta qualidade por meio da coleta de lixo.
Economeaning: Como a economia circular mudou o comportamento de compra dos consumidores alemães?
Acatech: Não há uma resposta certa para essa pergunta, já que as mudanças no comportamento do consumidor ainda estão ocorrendo em nichos isolados. Há bastante tempo observamos que as pessoas, principalmente os jovens, estão cada vez mais se voltando para produtos sustentáveis ou lojas de embalagens gratuitas. Isso é importante, pois uma economia circular requer consumidores críticos. Além disso, os “repair cafés" [reuniões em que as pessoas se encontram para consertar eletrônicos] se tornaram populares no país. Atualmente temos cerca de 1,5 mil iniciativas com foco em reparo aqui na Alemanha.
Para que essas atividades se enraízem cada vez mais na sociedade, a educação desempenha um papel crucial. Em nosso “Roteiro de Economia Circular para a Alemanha”, abordamos que o conceito de economia circular deve ser integrado à educação (primeira infância), assim como aos currículos de ensino, conhecimentos básicos e treinamento inicial e técnico; devem ainda ser disponibilizados aos programas de graduação, na indústria e cursos em geral.
Para complementar isso, devem ser criados e apoiados espaços experimentais e atividades relevantes de todos os níveis, bem como inovações sociais, em que os cidadãos, como prossumidores, conduzam processos de aprendizagem transformadores para a economia circular por iniciativa própria.
Economeaning: Poderia compartilhar alguns cases ligados à economia circular na Alemanha?
Acatech: Há uma série de cases interessantes na Alemanha, inclusive destacamos vários em nosso relatório sobre modelos de negócios circulares. Existe a startup Cirplus, por exemplo, que estabeleceu um mercado global on-line para reciclados e para matéria-prima de resíduos plásticos. Além disso, oferece serviços de consultoria, como processo ou análise de matéria-prima.
Outro case é AfB Social & Green IT, a maior empresa de TI sem fins lucrativos da Europa. Ela recondiciona e revende equipamentos reformados, como notebooks e telefones celulares. Se um aparelho não puder ser recondicionado, ele é desmontado e reciclado profissionalmente.
Os grupos de clientes incluem tanto consumidores como clientes empresariais. A AFB também tem compromisso social e emprega pessoas com deficiência.
Economeaning: Poderia compartilhar algumas das melhores práticas para ter sucesso na obtenção de bons resultados na economia circular (ou seja, em todo o ecossistema)?
Acatech: Um exemplo seria a Trumpf, uma empresa familiar de manufatura de máquinas-ferramentas e tecnologias a laser. Juntamente com a empresa de resseguros MunichRe e um provedor de serviços de IoT, a Trumpf criou um novo modelo de negócios: o de pagamento por peça. Esse modelo traz consigo a ideia de negócios radicalmente orientados a resultados. Em vez de comprar ou alugar o equipamento de corte a laser, os clientes pagam apenas por cada peça de chapa cortada.
Além de ter acesso à máquina de corte a laser totalmente automática, os clientes recebem: um sistema de armazenamento, o know-how de produção da empresa Trumpf, manutenção de equipamentos, componentes de serviço e matérias-primas.
Outro exemplo é a marca Frosch da empresa alemã Werner & Mertz, produtora de detergentes e produtos químicos domésticos relacionados. Ela possui orientação ecológica há mais de 30 anos. Em uma cooperação de valor cruzado com vários parceiros da indústria, a Werner & Mertz desenvolveu um material reciclado premium comercializado (por exemplo, PET) do Saco Amarelo e fluxos de produtos.
*Essa entrevista foi originalmente concedida em inglês.
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