Os critérios e as pegadinhas de um mercado em ascensão
Em nossa segunda newsletter abordamos o ESGwashing, e um dos tópicos mais recorrentes foram os títulos verdes ou green bonds. Por ser um tema instigante, resolvemos destrinchar o mercado e conhecer as entrelinhas deste instrumento financeiro que só em 2020 somou R$ 5,3 bilhões, sendo 18 emissões (13 debêntures, 1 CRI e 4 CRAs) de 12 empresas, segundo a B3.
Os títulos verdes ou green bonds são títulos de renda fixa temáticos e utilizados para captação de recursos. Mas, neste caso, o dinheiro é usado exclusivamente para financiar projetos que geram impacto ambiental. Além dos verdes, ainda existem outros dois títulos temáticos bastante populares atualmente: os sociais (social bonds, em inglês) e os sustentáveis, uma combinação entre o verde e o social. Nessas duas modalidades, os recursos captados devem ser destinados a projetos sociais e de sustentabilidade, respectivamente.
Um modelo que também tem ganhado espaço no mercado são os os títulos vinculados à sustentabilidade (Sustainability-Linked Bonds, em inglês) e conhecidos como SLBs. Nesta vertente, o dinheiro captado não precisa estar ligado necessariamente a um projeto ambiental, social ou sustententável, mas o emissor do bond se compromete a atrelar a captação a metas ESG, calibradas a partir de indicadores-chave de desempenho (Key Performance Indicator, em inglês ou a sigla KPIs).
Isso significa que os títulos desta natureza podem ter suas características financeiras e estruturais alteradas a depender do atingimento ou não das metas pré-estabelecidas. Normalmente, as taxas de juros sofrem aumentos quando alguma meta não é alcançada no prazo acordado. Outra modalidade de título temático que tem chamado a atenção são os títulos ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável), propostos pela ONU em 2015, e aqueles vinculados aos ODS, que seguem a mesma linha dos SLBs, com KPIs ligados a juros.
Na visão de Ilan Arbetman, analista de Equity Research na Ativa Investimentos, a emissão de títulos verdes é um "movimento positivo que dialoga com a lógica moderna de se pensar o mundo dos investidores, não só para o shareholder, mas também para os stakeholders, todos que podem ser afetados por uma companhia", diz em entrevista ao Economeaning.
No gif abaixo (aguarde alguns segundos para ler tudo) é possível conhecer quais títulos de dívidas podem ser emitidos com os selos verde, social e sustentável.
Quem é quem
Para entender melhor como funciona o complexo ecossistema dos títulos verdes é preciso conhecer os atores envolvidos na emissão desses bonds. O principal deles são os próprios emissores (empresas privadas, estatais e entidades financiadas pelo governo) e os participantes usuais do mercado de capitais brasileiro. Além deles, o mercado de bonds conta também com os Agentes de Avaliação Externa que atestam, por meio de um parecer independente, os atributos positivos dos projetos para os quais os recursos captados serão destinados.
Avaliações externas
A Sitawi, organização de desenvolvimento de soluções financeiras para impacto socioambiental, é uma das poucas verificadoras terceirizadas do Brasil que atende aos requisitos de certificação frente ao Climate Bonds Standard, o primeiro do tipo no mundo a estabelecer as melhores práticas para o mercado de bonds. A empresa é responsável por avaliar se a operação do green bond atende aos requisitos dos padrões criados pela organização Climate Bonds Initiative (CBI).
Em entrevista ao Economeaning, Valéria Andrade, especialista em Finanças Sustentáveis da SITAWI, conta que a seleção de verificadores da CBI é rígida e exige currículos das pessoas envolvidas no processo. Todos profissionais precisam ter experiências comprovadas na área de análise socioambiental.
"Analisamos se o que as empresas estão propondo está dentro dos critérios estabelecidos da CBI. São muitos critérios, como emissões atmosféricas, impactos ambientais, uso de recursos…", explica. "Já tivemos casos que, no meio do caminho, entendemos que a empresa não propunha o suficiente e não conseguiria emitir um título verde. Tentamos evitar que títulos sem indicadores relevantes ou metas sem ambição vão ao mercado", completa.
Conflito de interesses
Ainda que exista este tipo de preocupação e o processo seletivo dos verificadores seja criterioso, há quem acredite que o mercado de títulos verdes é um ecossistema cheio de conflitos de interesses. Isso porque as verificadoras são contratadas pelas próprias organizações interessadas na emissão dos green bonds, e as certificadoras ganham por cada aval concedido.
Valéria explica, no entanto, que no caso da Sitawi, para garantir qualidade e imparcialidade, foi criado um comitê semanal em que os analistas, gerentes e diretores da própria empresa avaliam todos os projetos em andamento.
"Verificamos juntos os indicadores, as metas, o que a pesquisa de benchmark mostra em relação aos pares das empresas emissoras, pesquisas científicas e outras coisas. Vamos validando e discutindo para aumentar e baixar a régua caso a caso. Temos grande preocupação em colocar algo no mercado que seja legal", diz.
Já Júlia Ambrosano, analista do Programa de Latam da CBI, esclarece que uma certificação tem critérios públicos, científicos e poder de comparabilidade, portanto, há mais rigidez na aprovação, o que acaba garantindo ao emissor mais credibilidade e ao investidor, mais segurança sobre o título.
A CBI é remunerada por cada emissão que certifica e, segundo documento oficial, a taxa para uma emissão de US$ 100 milhões, por exemplo, seria de US$ 1 mil. Sendo assim, emissões mais caras também geram taxas maiores para eles – algo que ainda pode configurar conflito de interesse para alguns.
Critérios, metodologia e a segunda opinião
Por outro lado, vale lembrar que, por se tratar de uma certificação mundialmente reconhecida, qualquer emissão duvidosa se torna um tiro no pé. Portanto, é de interesse da CBI que seu nome esteja atrelado somente a bonds de real engajamento, com indicadores e metas adequadas.
"Em 2009 tivemos o primeiro título verde do mundo, logo depois começamos a desenvolver uma taxonomia do que é um título verde, com base científica e olhando para o que será necessário fazer para descarbonizar a economia em 2050, levando em consideração oito setores", esclarece Júlia. "Os critérios são binários e claros, ou é ou não é. A intenção não é dificultar uma operação, mas nos baseamos em ciência e na realidade de cada setor da indústria para entender o caminho certo de atuação", complementa.
No caso da chamada segunda opinião, cada provedor tem uma metodologia diferente e a falta de padronização pode ser mal vista por alguns. Em novembro de 2018, por exemplo, a B3 informou que passaria a identificar títulos verdes e sustentáveis em seus sistemas mediante a certificação dos ativos listados.
Isso não significa, no entanto, que emissões com segunda opinião não sejam bem-vindas. Segundo Júlia, a própria CBI apoia alguns players de second opinion, já que a organização também atua para fomentar o mercado como um todo. O mesmo ocorre com emissores autodeclarados. "Eles podem sim ser aceitos no mercado, caso a emissão tenha indicadores e metas relevantes, mas não é uma prática comum", conta. No gif abaixo (aguarde alguns segundo para ler tudo) conheça exemplos de atividades elegíveis para projetos de financiamento com green bonds.
Problemas no caminho
Mesmo os títulos certificados às vezes podem deixar de atender os requisitos ou descumprir algumas regras no meio do caminho e, com isso, passam a ser títulos convencionais. Neste caso, o investidor pode pedir o vencimento antecipado e se desfazer do bond.
Segundo Valéria, a verificação anual do título verde não é obrigatória e, apesar do incentivo da Sitawi para que ocorra, há emissores que optam em não fazer. A analista da CBI, por outro lado, indica que um título certificado tem obrigatoriedade de report anual ao investidor.
"O mercado precisa se regular um pouco mais, e os investidores têm que acompanhar se o título continua adequado. Se ninguém tomar conta a coisa se perde. A CBI tem essa preocupação e pode exigir a qualquer momento explicações das emissoras. O relato aos investidores anualmente é obrigatório e às vezes a cláusula da própria emissão está vinculada a isso", conta Valéria.
O problema é que os títulos temáticos costumam chamar mais atenção no momento da emissão e acabam sendo esquecidos durante o tempo vigente. Falta acompanhamento dos investidores e até da mídia, que costuma divulgar somente a novidade.
Cenário brasileiro
Apesar das polêmicas, a analista da CBI vê o mercado brasileiro como uma comunidade ativa, com ministérios atuando não apenas para destacar as características verdes de ativos e projetos, mas também do ponto de vista de regulação.
"Tivemos a fast track para debêntures verdes, PL 2646 está em tramitação e dá mais benefícios aos emissores de títulos certificados como verdes… O mercado brasileiro tem se posicionado muito bem", comenta Júlia.
Segundo a analista, o Brasil se igualou ao Chile em operações do tipo e se destaca em projetos de energias renováveis, como solar e eólica, pois são ativos facilmente reconhecidos e compreendidos como verdes. Outros setores com forte potenciais são ativos ferroviários e infraestrutura hídrica.
"Em 2017 tivemos alta emissão. Em 2018 deu uma gelada por conta das questões políticas e em 2019 ocorreu a retomada. Em 2020, o grande volume foi puxado por todo ambiente envolvido na recuperação econômica. A procura por impacto social, que são intrínsecos ao verde, gerou grande demanda por outras rotulagens", conta.
Na visão de Júlia, as dificuldades do mercado de títulos temáticos acabam sendo os próprios entraves do mercado brasileiro. Os setores de agro e saneamento têm regulações que precisam ser ajustadas e muitos projetos nestas áreas estão aguardando o imbróglio regulatório para irem ao mercado.
"As dificuldades são setoriais e não do mercado financeiro verde. O mercado brasileiro já entendeu as nuances do que é um título verde e as rotulagens, vemos uma certa maturidade", conclui.
Cuidado com o greenwashing
Para o analista da Ativa Investimentos, essa janela de oportunidades também tem as suas "pegadinhas, truques, bonzinhos e vilões". Segundo Arbetman, o crescimento do mercado de títulos verdes pode acarretar dificuldades para os analistas fazerem um recorte de quem efetivamente segue as tendências sustentáveis.
Valéria compartilha desta visão. De acordo com a especialista, apesar de o Brasil estar amadurecendo, uma parte das organizações apenas quer surfar a onda verde. "Nosso papel é ajudar, mostrar o que não está bom e pode melhorar. A demanda está aumentando muito. Para se ter ideia, nos últimos dez dias tivemos dez novas operações. Têm coisas para peneirar e têm coisas de qualidade", comenta.
A maturidade em relação ao tema também passa pela compreensão de que há um grande risco de imagem ao emitir títulos verdes questionáveis. "Sempre vão ter empresas a fim de aproveitar o momento sem fazer muita coisa. Mas entendemos que não adianta a Sitawi, qualquer verificadora ou certificadora dizer que o título é bom se o mercado achar ruim. Isso desvaloriza o setor e gera desconfianças", diz Valéria.
Para as empresas, o recado de Arbetman é claro. Aquelas que tentarem se apropriar dos títulos verdes para inflar sua imagem artificialmente tendem a ser penalizadas. "O não cumprimento de uma cláusula traz risco de imagem e, como esses riscos se intercomunicam, existe a possibilidade de um risco de imagem virar risco financeiro, de negócio ou até mesmo operacional". Isso porque, ele alerta, muitas vezes o valor intrínseco da companhia está "intimamente ligado" com a forma como o mercado a enxerga.
Dicas aos investidores
Portanto, aos interessados nesse setor, Ilan recomenda cautela e uma boa dose de atenção. "A gente tem a preocupação de ver se a proposta para a emissão daquele título é aderente à finalidade", ponto que serve de dica para qualquer investidor de plantão. Outro alerta do especialista é para a possível subjetividade que pode estar nas entrelinhas de títulos vinculados a metas, conforme explicamos ao longo do texto.
Já para a especialista da Sitawi, além do acompanhamento do título em todo tempo vigente, outros itens merecem atenção dos investidores: checar se o indicador proposto é relevante para o negócio, se está atrelado aos reais impactos que a empresa causa, e se há a abrangência necessária.
Em relação à ambição da meta é preciso olhar o histórico da companhia e entender se o objetivo vai além do que já foi proposto por ela e por seus pares. E, por fim, avaliar se existe um cenário científico propício com tecnologia e infraestrutura para alavancar o projeto.
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